sábado, 25 de julho de 2009

Foi assim, em Luanda

Ao arrumar alguns papéis, daqueles que se guardam ao longo do tempo com afecto, encontrei este desenho. Decidi partilhá-lo hoje convosco. Talvez porque esta imagem fala de uma Luanda antiga, relembra-me tempos em que se anunciaram sonhos e desafios.

Foi há 34 anos. Havia a guerra. E desenhos. Porque havia crianças e vida também. Assim, foi naquele tempo em que grupos de desalojados povoaram durante semanas o então Liceu D. Guiomar de Lencastre.
Nzinga Mbandi ainda não chegara. Naquele espaço, erguia-se o Liceu Feminino, nascido em 1954, que se orgulhava da educação que proporcionara a jovens e futuras mulheres durante duas décadas.
Em Junho de 1975, o liceu abriu as suas portas para servir de abrigo temporário a quem vinha fugido da guerra. Nas salas de aulas escutaram-se, pela primeira vez, outras línguas e viram-se panos de todas as cores.
Na cerca, nos jardins interiores, na sala de Lavores e até perto do tanque onde se ia espreitar os jacarés (lá, ao pé da sala de Canto Coral) cuidava-se de gente. E procurava-se cuidar por inteiro. Os espaços exteriores encheram-se de alegria com os sorrisos e cantorias dos grupos de crianças que se distribuíam por diferentes actividades e, assim, iluminavam, sem saber, o cinzento de muitos dias daquele cacimbo quente.

Campanhas de limpeza, acções para angariar alimentos, organização de espaços e refeições constituíram algumas das inúmeras tarefas diárias que ocupavam os dias de todos os que tentavam preservar rotinas e vidas. Novos vocábulos ouviam-se nos corredores da escola e o léxico crescia e enriquecia a par de cada vivência. Dividir era a operação principal e a mais difícil daquele tempo. Era preciso dividir espaços, horas, pensamentos, tarefas, alimentos. Dividir sem apenas subtrair, fazendo os restos virar ganhos. Nos muitos nadas descobriram-se parcelas e assim se partiu para novas operações.

Julho, 1975. Tempo de partidas bruscas. De fugas, perdas, lutos. De sonhos, alegrias, esperanças e celebrações de vida. Tudo coube nesse cacimbo. Misturavam-se prazeres e dores, nascimentos e despedidas, despiam-se as vestes da ingenuidade trazida da infância e das ilusões exponencialmente romanceadas pelo sonho vivido intensamente.
Depois da dipanda, o Guiomar de Lencastre deu lugar ao Nzinga Mbandi. Hoje, nas suas instalações recuperadas em 2000, vejo partilhar outros saberes e gosto de saber que se fala de outros reis e rainhas, também. Já não há portões fechados no Liceu, nem cartões de saída, nem vendedores de picolés. Há zungueiras que por ali passam e tudo é possível comprar, no meio do barulho de vozes de uma nova geração que marca a saída do Nzinga agora.

Luanda apresenta-se transfigurada, mas guarda silenciosamente os seus mistérios. Neles encontro a generosidade e coragem de quem soube morar por baixo dos traços destes desenhos. Aqueles que guardo, junto com o brilho dos olhos e sorrisos daquelas crianças.

Luanda merece. E esta é uma das estórias que se podia contar!

5 comentários:

X disse...

Cotamaria,
Lindíssimo esse texto. Por favor, escreva mais no blog.
X

cotamaria disse...

Obrigado, X. São estórias de Luanda, simplesmente.
Gosto também de ler os seus posts, saiba disso.
cotamaria

F. disse...

cotamaria, você é mais uma daquelas pérolas que estão escondidas das casas editoriais e que a blogosfera libertou para brilhar entre leitores. agradeço a esta Casa, que eu criei e que em retribuição me presenteou com a chance de conhecer escritores como você, o fbaião, a kianda, a migas, sem falar nos outros que eu já conhecia antes de abrir este portões.

Guidinha Pinto disse...

Fiquei comovida. Que saudades de Luanda do início de 70.
Muito bonito este texto.
Vou voltar.

Anônimo disse...

LINDO!
Foi por acaso que encontrei este texto. Muitas recordações surgiram do tempo de estudante e dos desalojados que também vivi, dando o meu pequeno contributo no posto médico.

Obrigada Cotamaria