segunda-feira, 19 de maio de 2008

Arquivo morto

Arquivo Nacional de Angola, 8h30. Encosto no balcão de atendimento, ninguém aparece.

(Era minha segunda visita ao lugar. Na primeira, cheguei desavisado às 15h e explicaram-me que o arquivo fecha às 14h30. Paciência, são as regras do lugar, não vou meter-me agora a querer mudar tudo. A que horas abre? Às 8h, disseram-me na ocasião.)

8h45, uma moça aparece atrás do balcão. Os monitores dos computadores estão cobertos por coloridos panos africanos. Eu a chamo, ela me olha com indiferença e segue acendendo as luzes da sala. Eu insisto, ela me fuzila:

- O atendimento começa às 9h.
- Haviam-me dito que abria às 8h.
- Abre às 8h, mas o atendimento começa às 9h.
- !?!?!?
- Está escrito nessa placa ao seu lado.

De fato, na coluna ao meu lado, um folha A4 presa com fita-cola informa o horário de atendimento, segundo norma do senhor diretor.

Comecei mal. Paciência, muita paciência.

9h01, encosto no balcão. Sem nenhuma vontade de ser simpática, a moça vem me atender. Explico o assunto da minha investigação: Palácio de Ferro (uma construção antiga de Luanda).

- Nossos computadores não estão a funcionar, não temos como fazer buscas no sistema.
- !?!?!?!?! E por que não me disseste antes?
- O senhor pode olhar a nossa lista bibliográfica a ver se encontra algo parecido.

Ela me entrega dois livros pretos, capa dura, 70 folhas (cada um) repletas de nomes de livros e autores que não seguem qualquer ordem aparente de indexação.

Paciência, paciência, paciência...

Começo a pesquisa.

JESUS, C.A. Montalto de
"A criminalidade Germânica"
Londres: JAS. Truscott & Son, 1916 - 6p.;

Atrás do balcão, a embaixadora da boa vontade senta-se à frente de um daqueles computadores que não estão a funcionar.

PALESTRAS PELO CONDE DE LAVRÁDIO
"Palestras pelo Conde de Lavrádio"
[19...] - 13p.;

Ouço a musiquinha cretina do windows a ser iniciado.

ZÉVÉNINE, D.
"Le culte des idoles en Sibérie"
D. Zévénine - Paris: Payot, 1952 - 269p.;

Sibéria? Nessa sala sem ar-condicionado que derrete minha testa?

SUNG, Kim Il
"Los jovenes deben continuar nuestra obra revolucionária"
Kim Il Sung - Pyongyang, Corea. Ediciones em Lenguas Extranjeras - 1976 - 269p.;

O que será que essa mulher faz tão compenetrada à frente desse computador que não serve para consultar o catálago do arquivo?

EIN FUHRER FUR AUSLANDISCHE STDIERENDE
Berlin: Verlag Walter de Grayterr & Co. Berlin und Leipzig, 1928 - 40p.;

Chega. Levanto da cadeira, livros de consulta na mão, dirijo-me à diletante funcionária.

COTTA, J. C. Montalto de
"Aparências e Realidades"
Lisboa: Agência Geral do Ultramar, 1965 - 191 p.;

Ela se surpreende com a minha chegada, entretida que estava no jogo de paciência do windows no computador que... você já sabe.

- Já terminou? Não encontrou nada?

A paciência (a minha, não a do windows) esgota. Não resisto.

- Quero estes livros.

Entrego a ela a lista dos títulos que copiara já pensando em escrever este post. Ela arregala os olhos.

- Tudo isso? Não creio que o senhor vá encontrar algo sobre o Palácio de Ferro nestes...
- A senhora tem alguma idéia de onde eu posso encontrar dados sobre o Palácio de Ferro?
- Não. Como eu já disse, o senhor deve tentar nas listas...
- Foi exatamente o que acabei de fazer. E estes são livros que eu gostaria de olhar.

Silêncio. Ela fecha a cara ainda mais.

- Só aguardar.
- Preciso pra já.

Ela se levanta irritada. Vai ter de abandonar o baralho do Bill Gates.

- Vou lá dentro buscar, mas vai demorar uns 10 minutos ou mais.
- Não há problema. Temos até as 14h30. Enquanto a senhora procura os livros, vou ali na lojinha da frente comprar uma água, que está muito quente aqui dentro.

Ela some lá para dentro, eu sumo lá para fora.

Aha, deve estar até agora a espera de que eu volte.


P.S. - Será que quando dizem que por aqui é preciso ter paciência, estão a se referir ao joguinho de cartas do windows?

16 comentários:

Anônimo disse...

E você teve sorte de não ser atendido com o cigarro na boca a mandar o fumo para a sua cara, ou então, com o telefone ligado falando com o namorado que encontrou na discoteca "Chiauaua", dizendo, "meu mais que tudo, meu gatão, miau, miau, tou com o cio, vem já que estou aqui sozinha", depois baixinho, "tá aqui um pula a me chatiar, mas vou lhe driblar, vem rápido meu fôfo"

Anônimo disse...

Que horror!
Achei engraçado o comentário do Fernando Baião. Parece que eu vi a cena!
Olha, não é só aí que tem isso não. Aqui na lonjura eu também já passei por isso várias vezes. Vc fez muito bem e agiu certo. Por que as pessoas têm que trabalhar sempre de mau-humor e com tanta má-vontade?
Eu era funcionária pública no Brasil e sempre tratei a todos como se fosse empresa particular: com respeito e dedicação. Morro de ódio quando isso acontece comigo, pq eu acho que as pessoas recebem salário para cumprirem com as suas obrigações e não para jogarem baralho no computador...

Menina de Angola disse...

olha F. a coisa que eu mais ouvi desde que eu cheguei aqui é: Vc tem de ter paciência...
Mas tem horas que é tão difícil, né?

bj

Migas disse...

Paciência em tudo. Muita. Mas tal como disse a Menina de Angola, às vezes é difícil. Mas eu por acaso até tento ser calma... No início do MCG, contei a minha odisseia para tirar a carta de condução angolana. Ou melhor, para poder trocar a portuguesa pela angolana. Na minha empresa, era a única portuguesa e a ÚNICA a ter de passar por um processo moroso e fazer exame teórico e prático. Todos os outros (brasileiros, filipinos,coreanos, jordanos, malaios, sul africanos e todos os outros acabados em "inos" e "anos") não tinham de o fazer. Era só apresentar os documentos e ir à esquadra dizer que sabem conduzir. Alguns tinham só a carta e nunca tinham conduzido no país deles e, para cúmulo, a maioria deles precisava de tradutor para dizer que, sim senhora, sabiam conduzir! Então, já está a ver a minha disposição para começar "o processo". Conclusão, passados uns meses consegui a carta, depois de passar novamente nos exames, 8 anos depois. O que mais me irritou? Para além desta parvoice da "reciprocidade", o facto de ser tão maltratada na Embaixada Portuguesa como se fosse num qualquer outro serviço público angolano. O que já referi num post anterior, o estrangeiro consegue absorver o que de pior o país tem. Por isso, paciência com os angolanos e com todos os outros que, infelizmente, nos piores aspectos, os gostam de imitar!

Beijos

P.S. O Fernando esteve muito bem no comentário! O que eu me ri! É que já tenho ouvido dizer que, em muitas empresas as moças penduram-se no telefone e ali continuam, independentemente de chegar alguém ou não... :o)

Marina disse...

Nossa, F., eu já teria tido um ataque histérico no primeiro minuto...ando bem irritada ultimamente. Beijo pra vcs dois.

Anônimo disse...

Bom, começo a achar que Luanda é um lugar propício para se treinar a paciência. Tá certo que não adiante correr muito nessa vida, tudo mudará no tempo certo, mas alguns excedem a cota...rs
chr

Anônimo disse...

Será q ela ainda está lá esperando vc voltar??? ahahah...bela vingança!!!
E o horário seguido que foi inventado para a função pública? Continuam a fazer hora do almoço e saiem mais cedo...digam lá que o angolano(a) não é esperto??!! Muita paciência, é preciso muita paciência, são muitos anos de maus vícios...

Anônimo disse...
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Migas disse...
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F. disse...
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Anônimo disse...

Tive curiosidade e vim ler os comentários, e nem sei porque me admirei - um anónimo - porque será que quem faz este tipo de comentários se refugia sempre na cobardia do anonimato...

Anônimo disse...
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Anônimo disse...
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Anônimo disse...

Em primeiro lugar tenho a dizer à Migas que fique calma, não desespere, pois não é um mwangolé qualquer que pode deitar abaixo o teu trabalho.Se está na tuga a trabalhar deveria compreender aquele que está em Angola, no mesmo campo que ele. É verdade que há muito expatriado que só procura os negócios mais sujos e que muitos passam as tardes na praia ou namorando, mas não são a maioria, são as excepções à regra. Nós em Angola, temos pouca gente e poucos quadros, precisamos muito da boa cooperação para o nosso desenvolvimento.Vocês, pelo que tenho acompanhado, não precisam de dar explicações do que fazem, é dar muita confiança a quem não a merece.O "camarada" anónimo, não tem noção do que é hoje o seu país, a tal Disa, já não existe na forma que ele fala, isso é uma desculpa para não voltar ao seu país e contribuir para o seu progresso.Não desperte fantasmas rácicos, pois se entra por aí, tasse mal.Lembra o que está a suceder na Àfrica do Sul, irmãos negros matando e queimando casas de outros negros, só porque são oriundos doutros países africanos.Já esqueceu a nossa guerra entre kimbundu e Umbundu? Se não gosta, não coma.Tem que ultrapassar os seus traumas, senão vai morrer cedo. Ao amigo F., deixa p'ra lá,já tem o stress do trânsito, a falta de água e de luz, o roubo das empregadas e agora a falta da gasolina e gasóleo e ainda se vai preocupar com pessoas traumatizadas e complexadas?Kandandu forte para vocês, F. e Migas, e para todos os cooperantes de boa vontade, não esquecendo a Menina de Angola

F. disse...

Fernando, obrigado pelo apoio. Eu retirei os comentários do anónimo e ativei a moderação porque ele voltou a atacar à tarde, de forma muito mais violenta e grosseira. Achei melhor poupar meus leitores dessas cretinices. Em alguns dias a liberdade plena volta a imperar nesta casa. Abs,

Anônimo disse...

Ih, mas que coisa isso de anonimato... Quer contestar, opine com respeito. Tudo aqui é tratado com muito respeito e as pessoas discutem civilizadamente todos os assuntos.
Vamos lá, pessoal. Diálogo é a chave para um bom-entendimento. Pra que estresse? Bola pra frente...