quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Estórias da Luanda Recente

As casas em Luanda que foram ficando vagas com o abandono de milhares de pessoas com medo da nossa próxima Independência, começaram a ser objecto de disputa por parte dos que cá ficaram, muitos esquemas se passaram, muita gente ficou rica; não é isso que me interessa para já, mas sim contar a minha estória.
Uma filha igual a tantas que vivem neste país, nunca gostou do pai, não quis ser perfilhada, nem mesmo se habilitou à herança quando o senhor morreu, apesar dele ser muito rico. A verdade é que o tal pai, abandonou a sua mãe, de cor de pele escura, para ir se casar a Portugal, com uma mulher lá da sua aldeia, de pouca educação e sem estudos, que lhe deu três filhos. A sua mãe, sendo negra e vivendo sob um regime colonial, tinha o segundo ciclo completo e era funcionária das finanças.

Esta nossa personagem, a filha mulata, tinha sido entretanto despejada de uma casa na Praia do Bispo, em virtude das obras do Mausoléu do Fundador da Nação e sob pressão da família, candidatou-se a uma casa nas Ingombotas, que tinha sido do seu falecido pai. Como não tinha documentos que atestassem a paternidade, amargorou com idas e vindas à Junta de Habitação, local dos mais esquemáticos daquela altura. Utilizou várias vezes a gasosa, mas o baile continuava, mudavam os funcionários e tudo voltava ao princípio. Serviu-se da "cunha" método mais expedito e eficiente. pediu num alto graduado das forças armadas e logo ficou com papel passado, tudo em ordem como manda o figurino. Iniciaram-se as obras de beneficiação e começou logo a pensar-se na festa de inauguração. Angolano é assim, não brinca.

Chegou o dia, grande festa no quintal, com gente da alta burguesia nacional, muita comida e muito mais bebida. Foi contratado o melhor DJ para animar a farra, com os seus discos de antigamente de semba e outros ritmos angolanos, onde, também não faltaram os tangos de Gardel e od Gêvês de Cuba, ao ritmo da rumba e conga, bem como os merengues de São Domingos.

A nossa mulata lembrou-se que seria de bom tom popular, chamar o Velho António, antigo criado do seu pai, que tinha ficado a guardar a vivenda durante muito tempo, para estar também na festa. O Sô António já andava pelos oitenta e tais e como os ares da burguesia começaram a subir á cabeça da Dona, não quis misturar o fiel servidor com tão ilustres convidados e resolveu deixá-lo na sala, sentado no sofá.

A Dona, de tempos a tempos, trazia uns croquetes e umas cervejas ao mais Velho, coisa que foi repetindo ao longo da noite. Mais tarde, após um período mais ou menos longo, esqueceu-se do velhote e este, limpou um João dos Passos, whisky que encontrou na cristaleira, num abrir e fechar de olhos. Quando a Dona da casa se lembrou que se tinha esquecido do mais velho, vai a correr até à sala e deparou com o Sô António a mijar no sofá.
"Então senhor António, o que é isso?
Responde o Velho, nas calmas:
"Minha Senhora, comi bem, bebi bem, não posso mijar bem?

3 comentários:

F. disse...

Muito boa essa história, Fernando... Agora, alguns colegas aqui ficaram na dúvida sobre o que seria o recurso à "cunha"... hahahahaha

Anônimo disse...

Cunha, é um pedido que se faz a alguém bem colocado para interceder junto de outro alguém ou instituição sobre um problema que custa a resolver. Em Angola, a "cunha" é uma instituição, como a "gasosa".Obrigado por teres gostado da estória, está um pouco fantasiada, mas aconteceu, foi uma resposta popular, à nova burguesia emergente, que afinal também saíu das classes mais desafortunadas.
Kandandu

Migas disse...

Oras, oras! O homem tinha razão, Fernando!!! ahahah Muito divertido! :o)

Beijo